Joana Schenker: “O mar é a minha segunda casa”

Para os entusiastas pelo mundo dos desportos radicais no mar, Joana Schenker dispensa apresentações: é a primeira atleta de bodyboard portuguesa a sagrar-se campeã mundial. Nasceu no Algarve, na Aldeia da Pedralva, o local onde os seus pais – com origem alemã – encontraram a tranquilidade perfeita para criar raízes e onde, ainda hoje, Joana passa a maior parte dos dias.

Imagens ©Francisco Pinheiro

Movida de vontade e uma devoção enorme pelo mar, é a atleta portuguesa mais consagrada na modalidade, renovando o título de campeã nacional, consecutivamente, desde 2014. Apanhou a maior onda da sua vida em 2017, na Nazaré, e é-nos quase impulsivo questionar: O que é que ainda falta? Joana Schenker diz-nos: Tudo!

Esta é a beleza do bodyboard: não há limite.

Depois de um período atípico, causado pela pandemia mundial, que a impossibilitou de praticar, Joana Schenker está de volta à sua segunda casa: o mar. É lá o seu refúgio, o local que mais protege, preserva e defende, porque é esta força da natureza que a renova e a faz sentir viva. Neste Dia Nacional do Mar, trazemos Joana Schenker e a sua visão face à necessidade emergente de preservação do oceano e da mudança dos nossos hábitos em prol da sustentabilidade.

Ainda se lembra da primeira vez que sentiu o mar em cima de uma prancha? Qual foi a sensação?

(risos) A verdade é que não me lembro da primeira onda que apanhei. Eu nasci no Algarve, na zona de Sagres, e sempre fui à praia com os meus pais, desde bebé. Lembro-me da primeira vez que experimentei bodyboard já equipada e com a prancha…isso sim. Mas antes disso eu já tinha apanhado várias vezes “carreirinhas” com uma prancha de bodyboard. Foi uma passagem muito natural. A praia sempre fez parte da minha vida e de repente começou a fazer parte com uma prancha.

Essa paixão que sente pelo mar é uma sensação que não se esgota? Sente que é uma devoção que se mantém inalterada ao longo dos anos, desde o primeiro momento?

Completamente! Aliás, eu acho que se intensifica à medida que vamos aprendendo a lidar com o mar e a olhá-lo com “olhos de ver”. O mar é algo que se aprende a ler. Quando começamos não estamos habituados, temos aquela sensação boa de estar na água, mas com a experiência percebemos que é muito vasto o conhecimento pelo mar e nunca sabemos tudo sobre ele, porque é imprevisível. Cada vez mais sinto que quero voltar ao mar para conhecê-lo ainda melhor e é uma aprendizagem que nunca se esgota. Gosto de estar na praia apenas a olhar para o mar e, às vezes, nem chego a fazer bodyboard.

©Nuno Fontinha

E considera que essa interpretação é fácil?

Não é fácil e requer muito tempo a praticar (no mar). Não há dias iguais nem ondas iguais, mas vamos aprendendo, começamos a saber ler os sinais e a criar um mapa daquilo que poderá acontecer em cada momento. É claro que quando mudamos de país, de praia ou de oceano, não começa do zero (porque há muita coisa que aprendemos e são quase intuitivas), mas mesmo assim, cada vez que vou para uma praia que eu não conheço, primeiro sento-me, olho e tento interpretar o que está à minha frente. E isso é muito interessante.

Já viajou pelo mundo e já praticou a modalidade em praias únicas. Qual foi até hoje a melhor surf trip e qual é o destino que ainda não teve oportunidade de conhecer, mas gostava de ir um dia?

A melhor…é muito difícil dizer. Gostei de imensos países que visitei, completamente diferentes, mas gosto muito do Chile, que tem ondas muito boas. Também adorei a Austrália. Um sítio onde nunca fui e gostava era ao México, até porque é um destino para onde todos os surfistas vão.

Os pais da Joana viajaram pelo mundo, mas foi no Algarve que encontraram a tranquilidade para criar raízes. O que é que lhes despertou mais encanto a sul?

Eles vieram cá parar quase por acaso, não foi propriamente planeado começarem a viver numa pequena aldeia, como a Aldeia de Pedralva. Eu já nasci em Portugal e nessa altura o Algarve era muito diferente do que é hoje, era muito mais rural. Os meus pais compraram cá um terreno e acabaram por ficar. Foi algo muito mais sentido e não planeado. Claro que o Algarve é realmente um sítio muito especial, não é ao acaso que há tantos estrangeiros que vêm cá passar férias e acabam por ficar a viver aqui. É um sítio que tem muita qualidade de vida.

O que é que considera que a caracteriza, enquanto portuguesa e enquanto alemã?

(risos) Vou começar pela parte alemã. Eu acredito que sou bastante organizada e chego sempre a horas, sou estritamente pontual e gosto que as pessoas também o sejam comigo. E o meu lado português faz-me depois conseguir também ser descontraída e tenho aquele ar latino que temos quase todos, de não levarmos as coisas demasiado a sério, de sermos simpáticos e de rirmos muito.

Considera que se não tivesse crescido com os olhos postos no mar, teria descoberto o gosto pelo bodyboard?

Eu acho que não. Se não tivesse nascido aqui, provavelmente não fazia bodyboard. Acho que faria outra coisa qualquer ou outro desporto, porque eu gosto de fazer muita coisa, gosto de música e de dançar, por isso provavelmente teria sido bailarina. O bodyboard só faz sentido na minha vida por eu ter nascido aqui, numa terra que tem essa cultura, tem as ondas e nós devemos inspirar-nos naquilo que temos à nossa volta e aqui eu tinha a praia.

Os seus pais sempre a apoiaram para seguir esta modalidade?

Sim sempre me apoiaram e a minha mãe era incansável. Ela apoiou-me numa altura em que eu ainda fazia isto por hobby, antes de ser a minha profissão. Levava-me à praia todos os dias, deixava-me faltar às aulas e justificava-me as faltas (risos), porque eu sempre fui boa aluna. A minha mãe sempre me disse para eu fazer aquilo que me deixava feliz, mas quando chegou a altura de ir para a faculdade eu própria é que tive as minhas dúvidas, se tirava um curso ou se praticava bodyboard, porque não conseguia fazer as duas coisas. Cheguei a inscrever-me na universidade, fui a uma aula e depois pensei: “Não, vou fazer bodyboard” (risos). Eu acho que é difícil termos a confiança para nos ouvirmos, mas quem sabe realmente o quer seguir devo fazê-lo. As coisas não são sempre perfeitas, o bodyboard tem alturas menos agradáveis também, mas isto deve aplicar-se em tudo na nossa vida: se gostamos do que fazemos, vale sempre a pena.

Em 2013, o bodyboard deixou de ser apenas um hobby e passou a ter um peso profissional na sua vida. O que é que despertou para esta mudança?

Eu sempre competi, desde pequenina. Fazia os Campeonatos de Juniores, depois os Seniores e fui tendo algum sucesso, mas em 2013 ganhei o meu primeiro Open Nacional e isso ajudou-me a conseguir os primeiros apoios pagos, pelo que já não fazia sentido desistir. À medida que fui conseguindo financiar a minha vida apenas com o bodyboard, acabei por não ter necessidade de ter outros trabalhos. De certa forma, tudo se encaminhou de maneira muito natural no sentido de uma carreira profissional. Não foi propriamente uma decisão, as oportunidades começaram a surgir e agarrei com força, porque era o meu sonho. Em 2013 ganhei o circuito nacional, mas como tinha apenas nacionalidade alemã o título não foi reconhecido. A partir daí eu pedi para ter dupla nacionalidade e, no ano seguinte, voltei a ganhar, já com nacionalidade portuguesa. Começou tudo a encarrilhar-se desde então.

O título nacional é da Joana, consecutivamente desde então. Ainda que as conquistas sejam importantes, considera que o bodyboard é uma modalidade que exige muita dedicação, um esforço contínuo e uma prática regular?

Claro que sim, até porque faz-se de treino. Há pessoas com mais aptidão, outras com menos, como em tudo, mas a verdade é que o mar é um ginásio muito instável e não permite treinar a mesma coisa dez vezes seguidas no mesmo dia. Estamos sempre à procura de um tipo de onda para treinar uma certa manobra e tanto pode aparecer, como não, por isso para treinar bodyboard é preciso muito tempo a praticar na água. Não há treino mais eficaz do que passar, de facto, muito tempo dentro de água.

Como é que são os seus treinos? São apenas na água?

Treino fora da água também, como complemento, mas dou sempre prioridade ao treino na água. Quando não treino tanto tempo na água, ou porque as ondas não estão boas ou, por exemplo, durante a quarentena, em que não podia sequer ir para a água, eu tenho um pequeno ginásio em casa com alguns acessórios básicos. O meu treino de cardio preferido é saltar à corda e também tenho alguns pesos livres, ainda que também faça muitos exercícios com o meu próprio peso. O mais importante para mim é o CORE, ou seja, a zona abdominal, porque no bodyboard é extramente importante termos um CORE forte e eu acho que é algo que todos os bodyboarders devem fazer, assim como a natação. A flexibilidade também é muito importante, porque acabamos por nos contorcer debaixo de água e quanto mais flexíveis formos menos nos vamos aleijar e se formos mais flexíveis também conseguimos fazer manobras de uma forma muito mais bonita.

Para quem pratica desporto, a alimentação tem um peso muito importante. A Joana mantém uma alimentação vegetariana há vários anos. Pode contar-nos um pouco da tua rotina alimentar?

Eu tinha dez anos quando decidi que queria ser vegetariana e foi uma decisão moral. Adorava os animais e não conseguia entender a questão de os “comer”. Decidi que não iria comer mais, e não verdade nunca mais comi. Eu não sabia nada sobre o que era saudável ou não, simplesmente cresci assim e a minha mãe sempre teve um cuidado enorme com a alimentação, comprava produtos biológicos, muitos legumes e poucos enlatados. Portanto, a minha decisão não chocou ninguém. Quando saí de casa dos meus pais, comecei a ter mais cuidados com a minha alimentação e apercebi-me que só precisamos de ter um mínimo de cuidado para manter uma alimentação mais equilibrada.

Devemos ter a capacidade de ouvir o nosso próprio corpo e se ele pede algo devemos dar-lhe. Acredito que a vida é para saborear. Por exemplo, a questão dos rótulos alimentares, enquanto “vegan” ou “vegetariano”, acho que isso devia acabar, para que as pessoas possam ser vegetarianas um dia e no outro possam comer camarão e ninguém lhes “cair” em cima. Acho que isso iria ser muito mais saudável e as pessoas poderiam até tornar-se vegetarianas, mesmo sem querer.

Considera que o mar do Algarve é propício para praticar a modalidade? Quais são, para si, os melhores sítios em Portugal para praticar?

Portugal, em si, é um país incrível para praticar e temos uma boa costa, de norte a sul, para apanhar ondas. O mar do Algarve não é tão propício, mas a partir de Sagres – que já apanha muita mais ondulação e tem recortes perfeitos – faz com que as ondas sejam muito boas. É mais propício na Costa Vicentina, do que propriamente no Algarve.

Depois de vários títulos nacionais e também europeus, a conquista do Mundial aconteceu em 2017, na Nazaré. De que forma relembra este momento? Que importância teve esta conquista para o seu percurso?

Foi um momento muito especial, como é óbvio. Foi o culminar destes anos todos a caminhar num único sentido. Quando agarrei na taça de Campeã do Mundo, pensei: “Todas as coisas que fiz ao longo destes anos – na altura já tinha 15/16 anos de competição – fizeram todo o sentido”. Depois foi também muito especial, porque foi numa praia portuguesa, na Nazaré, com o público português a apoiar e a dar uma força enorme. Foi um título muito especial, porque foi o primeiro título mundial de uma modalidade profissional, como o bodyboard, em Portugal, e não fazia sentido nunca ter acontecido, porque o nosso país tem muito talento. Foi uma vitória coletiva, não apenas minha, mas de todos. Claro que também as repercussões do título foram muito boas, abriram-me imensas portas e a minha vida mudou depois do título.

Depois deste título mundial, pergunto: o que é que falta ainda conquistar?

Vou ser sincera, em termos de competições e títulos…já conquistei tudo. Já são muitos anos a competir, é claro que a cada época começa tudo do zero, mas tenho uma vida um pouco diferente em relação ao mundo do desporto. Eu adoro ganhar e fico muito contente quando ganho, porque é ver o meu trabalho bem feito, mas o bodyboard é uma modalidade na qual não existe fim. Ainda tenho muito para evoluir e por isso a minha motivação, no fundo, vem dessa necessidade de evolução, por uma questão de ego – apenas por mim, para me sentir melhor.

Em colaboração com o Oceanário de Lisboa, a Joana aceitou o desafio de percorrer várias escolas do Algarve, com o intuito de dar a conhecer aos jovens um pouco do seu percurso, mas também passar uma mensagem pedagógica em torno da proteção do Oceano. Qual é o principal objetivo desta iniciativa?

O Oceanário de Lisboa e a Fundação Oceano Azul disseram-me: “Queremos patrocinar-te enquanto atleta e queremos que faças o nosso school tour”. A iniciativa chama-se Schenker School Tour. No início fiquei muito assustada, porque sou um pouco tímida e nunca gostei de discursar ou apresentar trabalhos na escola, mas, ao mesmo tempo, passar uma mensagem de proteção do Oceano era muito importante e finalmente podia fazê-lo. Não pude recusar. Tive de passar por cima dos meus medos e até ao momento estou a adorar. Entretanto já passei por mais de 50 escolas do Algarve, sendo que comecei em dezembro de 2018 e tem sido constante. Agora está um pouco parado, porque não há aulas, mas estou a tentar adaptar a uma vertente online.

Por norma, faço um apanhado da minha carreira e explico como é que cheguei ao título mundial, sempre aliado a tudo o que o oceano me deu, mas a questão mais fundamental baseia-se na proteção do oceano, de que forma os jovens podem contribuir para isso, o que é todos nós podemos fazer em casa e o valor que tem fazermos a coisa certa.

A Joana aproveita, de certa forma, a visibilidade que tem para também alertar para estas questões relacionadas com a proteção e preservação do Oceano. Considera que as pessoas estão cada vez mais conscientes da atual necessidade emergente de conservar o meio ambiente?

De uma forma geral, acho que sim. Todos nós sabemos o que é suposto fazer, mas depois passar à prática já é mais complicado, porque às vezes para mudarmos de hábitos ou para fazermos uma coisa bem feita temos de tomar outras escolhas, ou seja, temos de sair da nossa “bolha” de conforto. Mas ao mesmo tempo, há coisas tão simples que podemos fazer e que têm um impacto muito grande. Por exemplo, a questão dos protetores solares, há certos protetores que são prejudiciais aos corais e à vida marinha e há outros que não. Eu não tinha noção do impacto que o uso destes protetores solares tinha no oceano.

Despois, também há um contraste muito grande entre as pessoas mais conscientes e aquelas que não querem saber. Eu vejo pessoas na praia que apanham o lixo – o delas e o dos outros – à sua volta, mas depois também há imensas pessoas que sujam tudo. Percebemos que ainda há muito a fazer. A questão das beatas, para mim, é terrível, porque é algo que não vem do mar, são as pessoas que as deixam lá. Já fizemos várias limpezas de praias em Sagres e o pior ainda é nos parques de estacionamento, mais até do que nas praias, e isso deixa-me muito triste. Uma coisa é retirarmos lixo que veio com o oceano outra coisa é limparmos o lixo que as pessoas deixam para trás.

Como em todas as modalidades desportivas, a prática mantém-se até o corpo aguentar. Concorda? Aplica-se ao bodyboard?

Concordo plenamente. Acho que não faz sentido estar a dizer até com que idade vou praticar a modalidade. Enquanto eu me sentir bem e apta, vou fazê-lo. Quando sentir que o meu corpo já não aguenta ondas tão grandes, passo para ondas mais pequenas e vou adaptando-me. Esta é a beleza do bodyboard: não há limite. Se quando tiver 80 anos ainda conseguir apanhar ondas, eu vou estar no mar.

Depois de um período que impossibilitou a prática da modalidade, devido ao contexto de pandemia, como é que está a ser este regresso ao mar?

Eu estive 58 dias sem ir à praia. Nunca tinha estado tanto tempo na minha vida sem ir à praia, nem nunca tive uma lesão que me afastasse tanto tempo do mar. Vou ser muito sincera, foi uma experiência surreal. Não foi nada fácil e até um grande desafio a nível psicológico. No primeiro dia, quando voltei ao mar, senti muita diferença, senti-me mais cansada e senti os meus músculos de uma forma que já não sentia há muito tempo. Mas, por outro lado, penso que até foi bom, porque um atleta nunca para e isto foi uma pausa para reavaliar tudo o que eu faço. Consegui eliminar certos aspetos negativos da minha vida e parar não foi de todo mau. Honestamente, acho que estou na melhor forma na minha carreira, portanto não sinto que me tenha prejudicado.

Como é que imagina a sua vida daqui a 10 anos? O mar será sempre o seu cenário?

Sim, de certeza. Não sei se daqui a 10 anos estarei a competir, o meu corpo é que o vai ditar. Eu gostava mais de me dedicar mais à conservação do mar, de uma forma mais ativa, no terreno, e se calhar o meu futuro passará por aí. Mas estarei sempre ligada ao mar, é impossível desligar-me. O mar é a minha segunda casa, porque é o sítio onde passo mais tempo, fora da minha própria casa. Eu vejo o mar como um organismo. Eu digo bom dia quando chego, agradeço quando apanho ondas boas, falo com o mar, ainda que pareça maluca. É o meu melhor amigo.